
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deu início a uma movimentação silenciosa, mas potencialmente revolucionária, nos bastidores do mercado financeiro brasileiro. Com uma solicitação formal ao Centro de Regulação e Inovação Aplicada (Cria), a autarquia exige um estudo técnico aprofundado sobre a tokenização de ativos e a aplicação de blockchain em segmentos centrais da infraestrutura do mercado de capitais, incluindo depositários centrais, mercados de balcão organizados, custodiantes e escrituradores. O foco dessa demanda é simples, porém de consequências imprevisíveis: entender se e como as novas tecnologias podem substituir ou transformar funções tradicionalmente desempenhadas por intermediários do sistema financeiro nacional.
Esse movimento representa não apenas um gesto de atenção da CVM às inovações, mas também uma sinalização concreta de que mudanças estruturais estão em curso. Ao buscar conhecimento técnico detalhado, a CVM mostra que não pretende ser apenas uma espectadora passiva na corrida tecnológica que já remodela mercados internacionais. Na prática, essa iniciativa reforça que o órgão regulador está se preparando para adaptar a regulação vigente à lógica de um mercado cada vez mais digital — onde contratos, liquidações e transferências não dependem de papel, carimbos ou burocracias, mas de linhas de código em redes descentralizadas.
Segundo o advogado Fábio Rodarte, do renomado escritório Levy & Salomão Advogados e pesquisador associado ao Cria, a digitalização do mercado de capitais brasileiro já não é mais uma projeção futurista — é uma realidade. A afirmação dele ecoa o que muitos já observam: o ciclo dos títulos escriturais, embora ainda dominante, está se esgotando para dar lugar à era dos títulos tokenizados, geridos com transparência, rastreabilidade e eficiência operacional.
A questão principal colocada pela CVM gira em torno da aplicação da tecnologia blockchain no chamado “pós-negociação” — um estágio crítico onde ocorre a liquidação dos ativos, ou seja, a transferência efetiva de valores e titularidades entre as partes. É neste ponto que contratos inteligentes (smart contracts) demonstram seu poder disruptivo: por estarem integrados diretamente na blockchain, esses contratos executam automaticamente cláusulas e condições predefinidas, eliminando a necessidade de intermediários humanos ou mesmo de instituições de compensação.
Na prática, isso pode significar uma verdadeira reconfiguração do papel de instituições como clearings e depositárias centrais, que hoje são essenciais para garantir a segurança e a liquidez das transações, mas que, diante de tecnologias com liquidação instantânea, podem perder protagonismo ou precisar redefinir seu modelo de atuação.
O estudo solicitado pela CVM deve analisar casos concretos e já em operação no mercado brasileiro, especialmente no âmbito do sandbox regulatório, ambiente experimental criado pela própria autarquia para testar modelos inovadores fora das amarras da regulação tradicional. Um exemplo relevante é o da Bee4, uma plataforma que opera como mercado secundário de ativos tokenizados e que já está sob escrutínio da CVM dentro desse ambiente controlado.
A análise dos projetos em curso deve oferecer subsídios técnicos e jurídicos para a formulação de novas diretrizes normativas. E isso não é pouca coisa. A regulação de mercado financeiro no Brasil é altamente complexa, com normas específicas para cada tipo de entidade envolvida na cadeia de negociação e custódia. As regras que regem depositários centrais estão previstas na Resolução CVM 31, as de mercados de balcão organizados na Resolução CVM 135, as de custodiantes na Resolução CVM 32, e as de escrituradores na Resolução CVM 33. Todos esses dispositivos podem precisar de adaptações significativas — ou até de uma completa revisão — para contemplar o funcionamento das infraestruturas descentralizadas baseadas em blockchain.
Ainda segundo Rodarte, essa transformação não exige necessariamente uma ruptura normativa. Pelo contrário: o arcabouço regulatório atual é flexível o suficiente para absorver as novas tecnologias com ajustes pontuais. Isso significa que, ao invés de criar uma nova estrutura legal do zero, a CVM poderá reinterpretar as funções já existentes à luz dos novos modelos operacionais que surgem com o uso de blockchain, reduzindo o custo de transição e acelerando o processo de adaptação do mercado como um todo.
Nesse contexto, a movimentação da CVM deve ser vista pelos investidores — especialmente os que operam em fintechs, gestoras digitais e plataformas tokenizadoras — como uma sinalização altamente positiva. A regulação brasileira, tradicionalmente vista como engessada, está mostrando disposição para compreender, dialogar e incorporar inovações. Isso representa um alívio regulatório e uma abertura estratégica para a consolidação de novas frentes de negócios no país, com impacto direto no apetite de investidores nacionais e internacionais.
Vale destacar que a tokenização de ativos — processo pelo qual um ativo real, como uma ação, debênture ou até mesmo um imóvel, é convertido em um token digital — não é uma mera digitalização estética. Trata-se de uma mudança de paradigma. Um token pode ser fracionado, negociado em tempo real, com rastreamento completo de sua origem, e pode até conter regras automatizadas de governança. Isso reduz drasticamente custos operacionais, mitiga fraudes, aumenta a liquidez de ativos tradicionalmente ilíquidos e amplia o acesso ao mercado de capitais para novos perfis de investidores.
Mas esse processo também levanta dilemas. Se os tokens circulam em redes descentralizadas, quem é o responsável pela custódia? Quem garante que a titularidade foi transferida corretamente? Quem responde em caso de falha no smart contract? São essas perguntas que o estudo técnico solicitado pela CVM pretende responder. E mais: quais são os limites da atuação da autarquia frente a uma tecnologia cujo princípio fundacional é a descentralização e a desintermediação?
Do ponto de vista estratégico, o timing da CVM não poderia ser mais oportuno. No exterior, países como Suíça, Cingapura, Emirados Árabes Unidos e Reino Unido já contam com regulamentações específicas para ativos digitais e infraestruturas descentralizadas. O Estados Unidos, por sua vez, ainda vive um impasse jurídico entre a Securities and Exchange Commission (SEC) e as grandes plataformas de criptoativos, o que abre espaço para países com regulação clara e amigável atraírem capital estrangeiro e inovadores do setor.
Para os investidores que acompanham o portal Open Investimentos, essa movimentação pode parecer técnica, mas carrega consequências estratégicas enormes. O avanço da blockchain como infraestrutura não impacta apenas o mundo das criptomoedas, mas todo o ecossistema financeiro. Se as liquidações passarem a ocorrer por smart contracts, o tempo de operação de ativos pode cair de dois dias úteis para poucos segundos. Se a custódia deixar de ser centralizada, o risco operacional muda de perfil. Se o token passar a ser o padrão dos ativos, a forma de fazer due diligence, de avaliar riscos e de montar carteiras terá que ser repensada.
A boa notícia é que o Brasil está se mexendo. E está se mexendo com método, com estudo e com pragmatismo. O que a CVM propõe não é uma aventura regulatória nem uma adesão ideológica à blockchain, mas sim um movimento técnico e estratégico de antecipação às mudanças que já estão em curso. Como todo bom regulador, seu papel não é frear a inovação, mas garantir que ela ocorra com segurança, previsibilidade e em benefício do mercado como um todo.
Se você investe, desenvolve soluções tecnológicas, opera no mercado financeiro ou apenas acompanha de perto a transformação digital da economia, fique atento: as estruturas tradicionais estão sendo redesenhadas. E quando a infraestrutura muda, muda tudo — do modelo de negócios ao perfil do investidor, passando pela forma como se calcula risco, rentabilidade e liquidez.
No final das contas, o estudo solicitado pela CVM pode ser visto como o início de uma nova fase do mercado de capitais brasileiro: mais ágil, mais inclusiva, mais eficiente — e, quem sabe, finalmente preparada para competir em igualdade de condições com os grandes centros financeiros globais.
Com informações Estadão